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O DIA EM QUE TENTEI VER O MAR

thomaz ambrosio - 03/2023

Algumas luas atrás, me vi na difícil tarefa de tentar ver o mar. O contexto era um curta animado, passado inteiro no meio dele, com o auxílio de uma tartaruga-marinha, que carregava o protagonista. A grande maioria das cenas, portanto, era pontuada por um azul-marinho forte e saturado, mais imponente que o do céu — um imitador eficiente, mas sem o mesmo brilho. Mas pintar o frame com essa cor não é o suficiente pra fazer presente o mar, e assim acabei falhando nessa tarefa. O que transpareceu foi, talvez, um oceano. Algum oceano, de nome desconhecido, já completamente compreendido e confinado nas duras paredes da ciência. Já o mar, eu não vi.


Enquanto sonho, ele me procura. Meu único recorrente, que atravessa diversas épocas da minha vida, envolve uma onda gigante se formando enquanto estou nadando. Não conseguiria estimar seu tamanho, mas lembro da sensação de apertar o olho pra conseguir ver o topo dela. Ela me puxa sem qualquer resistência, até quebrar. Pelo meu tamanho e o da onda, não me entendo como fator determinadamente pra ação: provavelmente ela nem sabe que estou ali,  intruso. Mas o que vem depois do caldo, que nunca vira memória, é a lembrança de estar na areia e ver uma segunda onda se formando. Sempre consigo fugir.

 

O significado eu não arrisco decifrar, ou sequer confiar nas minhas métricas de entendimento. Mas se Anthony Bourdain estava certo, “todas as boas histórias terminam no mar”, enquanto a minha começa nele. Não só a minha, mas a nossa, a do homem, descendente da primeira esponja que oxigenou o mar, que ainda era oceano, pois não havia nada pra terminar ali. 

 

Em Ocean Waves, do Studio Ghibli, o mar aparece como espelho: Taku e Yutaka observam as ondas, que devolvem esse olhar em memórias e um novo acesso ao passado. O que é refletido, naturalmente, se limita ao que é projetado, e nada mais. Nessa cena, as ondas sequer são animadas: elas aparecem como brilhos, pontos em branco que demonstram o reflexo do sol e, assim, implicam em uma elevação ondular. O azul-marinho dá lugar a um verde amarelado, indicador que o sol esta prestes a ir dormir. Mas é um mar. Em outro sonho, o oposto: a única coisa em comum com Taku e Yutaka é o fato de não observar as ondas da areia. As ondas permanecem colossais, gerando trovoadas e explosões toda vez que se renovam ao quebrar no mar. É noite, mas consigo vê-las com clareza de cima de uma rua de pedra, um calçadão (para o carioca, o primeiro guardião da cidade perante o mar). Diferente do de Copacabana ou Ipanema, o meu calçadão é alto, muito alto, me deixando acima até das ondas. A areia continua ali embaixo, e as luzes que enxergo de cima denunciam que há vida como a minha ali. Mas não desço. E as ondas continuam quebrando. 

 

Talvez essa indiferença forma a maior das minhas mágoas. Se olho ou não, se estou no mar ou não, não importa. As ondas quebram, e quebram. Já as que eu produzo quando falo não surtem qualquer efeito. São curtas, pequenas, feitas para o ouvido humano — acostumado com essa mediocridade, mas saudoso em relação ao mar, com uma nostalgia instintiva que transparece mais quando colocamos uma concha na orelha e ouvimos o som de casa, das esponjas e do som de trovão.

 

O corpo lembra, mas só consegue comunicar o oceano. Já o mar é indiferente. Suas ondas não reconhecem mais as nossas, mas o caminho de casa traz essas lembranças. Se a vida veio ao sairmos dele, ela termina quando voltamos. A areia, que tanto machuca, é o limite para alcança-lo. Serve como ponto de negação; quando queremos pertencer mais a ele do que a terra, ficamos por ali, observando. E o mar, então, se define: não pode ser visto por inteiro. A indiferença de suas ondas é a de quem não está olhando de volta. Pequenos ciclos, eventos, fenômenos que talvez ele próprio nem tenha noção que ocorra em seu contato com a terra. 

 

Quando fiz o curta, eu animei o oceano. O pintei de azul-marinho, e passei horas estudando como reproduzir as ondas — não as ondas do mar, que quebram nos meus sonhos, mas as linhas que representam o sinal de vida daquele corpo de água; pequenas, constantes, que tem na espuma o registro que um dia existiram. Por outros motivos, o projeto veio ao mundo sem elas, e também sem mar. Ao longo do processo, observei as ondas muitas vezes, mas nunca consegui enxerga-lo. Trata-se de uma missão impossível, e arrisco dizer que, ao observado por inteiro, deixaria de ser. Quanto ao curta, falhei por buscar a vida apenas no frame, naquele pequeno quadrado, definido por seus limites, que combinam mais com o oceano. Depois da areia e do calçadão, sonhando acordado ou enquanto durmo, falhei também sentado na frente do computador. Até hoje, eu nunca vi o mar. 

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