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COCHILAR E/OU RESISTIR

thomaz ambrosio - 04/2023

Como se sentasse ele dobrado ao regaço,
O sono, como névoa, soprou-lhe sobre.
Uta-napíshti á ela falou, a sua esposa:

Vê o moço que pedia a vida,
O sono, como névoa, soprou-lhe sobre!

 

Não demorei muito pra encontrar esse trecho do épico de Gilgamesh (“Ele que o abismo viu”, traduzido do acádio pro português com maestria pelo Jacyntho Brandão) enquanto pensava sobre o tema desse mês. Trata-se de uma história de quase cinco mil anos de idade, escrita em tabuinhas de pedra, e que tem em seu clímax um semi-deus lutando contra o sono. Falar — e antes, pensar — sobre esse tema significou, pra mim, primeiro entender que ele existe de forma escorregadia enquanto conceito, pelo menos por aqui. No inglês, por exemplo, o termo de “sono” é o mesmo de “dormir”: “sleep”. A diferença entre estar desacordado e a sensação que antecede esse estado é irrisória; fica-se “sleepy”, e eventualmente sleeps. O sono, nosso sono lusófono, não é um particípio; é sua própria palavra, com vida própria; um companheiro que pode, ou não, anteceder a experiência de dormir — experiência essa que pode, inclusive, ser descrita com essa palavra. Para propósito de entendimento, vamos tratar dele apenas em sua presença no consciente. 

 

Fico até constrangido, inclusive, de falar do sono dessa forma, como se ele não tivesse presente na sala. Ele está do seu lado lendo, e do meu também, mesmo que em horário inconveniente. Sua ambiguidade fica clara em uma comparação descabida entre eu e ele: Se em “Ele que o abismo viu”, o sono é uma alegoria para a morte, inevitável até para o semideus Gilgamesh, no mundo do não-semi-deus Thomaz, o sono é uma provocação. E não poderia ser diferente! Além do valioso metro de vantagem no quesito altura (ele é descrito como um homem de 3 metros), suas preocupações envolviam inspecionar as muralhas de Uruk e atazanar os recém-casados da cidade, algo que certamente eu tiraria de letra. Acredito também que o poeta Sin-léqi-unnínni não teria omitido alguma possível preocupação com contas a serem pagas ou algum tipo de culpa carregada. Só vislumbra-se um princípio de igualdade entre nós na última tabuinha, quando ele começa a se perguntar “Por que estou acordado?”

 

No verso que abriu esse texto, o imortal Uta-Napíshti narra o sono como o momento derradeiro da busca do Rei de Uruk para sua própria imortalidade. Essa busca é motivada pelo luto por seu grande amigo e companheiro Enkidu, que só foi entendido como morto após 7 dias de observação — “quando caiu um verme de seu nariz”. Um presságio, talvez, mesmo que apenas em forma, da evolução que acompanharia a industrialização do mundo. Enkidu morreu com certeza, e o verme que caiu de seu nariz já estava lá quando se ainda o entendia como vivo. Essa experiência subjetiva de percepção tornou-se real e prática com a morte em vida: é possível comer, andar, e principalmente trabalhar tendo um verme pronto pra despencar a qualquer momento. E não se trata de uma falha, muito pelo contrário: é um dos pilares do funcionamento do mundo; a supressão completa do potencial de cada pessoa, da imaginação para quebrar as próprias barreiras imaginárias que criamos. Longe de ser um conceito recente — Brás Cubas escreveu um livro de suas memórias sobre o assunto no século XIX —, mas cada vez mais doloroso, visto que a decomposição do espírito vem muito antes da decomposição do corpo.

 

Com linhas tão borradas, é o sono que acaba podendo viver para seus próprios devaneios. Aparece ao longo do dia, some ao deitar-se na cama, tira férias por meses até voltar e se tornar uma companhia diária. A existência livre, sem a função de carregar para o inconsciente, deixa sua personalidade caprichosa aparecer. Para quem já morreu, mas segue digitando, o sono é uma provocação luxuosa da imaginação, que te faz vislumbrar a vida onde dormir não significa a morte; onde a produção pode ser interrompida para que o sono te conduza com carinho até seus sonhos. Não é por mal, mas acaba sendo uma provocação cruel. O acompanhante que permite dormir é outro, mais rude e direto: o cansaço. Mas o sono é fiel a sua função mesopotâmica: mesmo que apenas nesse momento, vai assumir a função de condutor e te fazer dormir pela última vez. Takashi Shimura, o Senhor Watanabe em Ikiru (1952), teve uma das performances mais emocionantes que já vi ao perceber essa fidelidade, enquanto cantava “Gondola no Uta”. A morte já havia sido dada como certa, o que ele percebeu ali foi sua mortalidade: assim como Gilgamesh, soube que iria dormir de uma vez por todas, o que revelou o verme em seu nariz e o fez perceber que estava acordado, mas não vivo.

 

Com toda essa carga de significados e agouros, fica difícil simpatizar com o sono. Felizmente, temos a opção de não ressenti-lo: no estado atual das coisas, minhas e talvez suas, eu prefiro acreditar que suas aparições são uma tentativa de intervenção, um outro lado da moeda na função de guia, que suplica pra que você experiencie dormir apenas para poder apreciar estar acordado. A morte, despreocupada em sem hora marcada ou ritual de preparo, é sempre garantida no final, e se o que antecede e sinaliza que vamos dormir é o sono, só nos resta a vida pra ocupar essa função antes do fim.

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